segunda-feira, outubro 23, 2006

A sondagem da Católica

Tenho lido na blogosfera alguns comentários aos resultados da sondagem da Católica. Antes de mais, acedo à sugestão do João Gonçalves, mas por intermédio de outrem: se quiserem ver a melhor apresentação dos resultados desta sondagem, farão melhor em ir aqui, onde o Jorge Camões arranjou uma maneira de os transformar em "beautiful evidence". Os dados estão apresentados de forma a facilitar muitíssimo a sua compreensão. Este link vai já para os meus favoritos.

A apresentação mais imaginativa dos dados permite inclusivamente de deles possam emergir mais facilmente explicações para os padrões encontrados. Para o Jorge Camões, eles mostram:

"Que temas associados a minorias visíveis são aqueles que têm maior percentagem de rejeição. Que a eutanásia a pedido da família e a pena de morte estão estranhamente próximas. Que há um grupo de temas (quotas na política, células estaminais, sacerdócio, prostituição), todos curiosamente mais próximas do universo feminino, com níveis elevados de desconhecimento ou indiferença que se traduzem na incapacidade de opinar. Que a educação sexual nas escolas é o único tema consensual."

O que, aliás, não será muito diferente disto, se bem entendo:

"Tudo visto e ponderado, constituímos uma sociedade "aética" em que a "norma" vale muito dentro de casa e para os outros, e começa a valer menos assim que se desce as escadas ou se apanha o elevador para a rua."

Li também, no blogue de Miguel Vale de Almeida, meu antigo professor no ISCTE - de resto, um dos melhores - alguns comentários à sondagem. MVA critica o facto de nela se incluirem, ao mesmo tempo, perguntas sobre os direitos dos homossexuais e sobre outros temas:

"Colocar a igualdade de direitos no mesmo plano que o consumo das drogas ou o sacerdócio feminino numa confissão religiosa é mais do que enviesamento: é partilhar da premissa (e oferecê-la aos inquiridos) de que há um problema moral (para não dizer pior) com a homossexualidade. E se a pergunta tivesse sido a única da sondagem? Ou junto com outras perguntas relacionadas com a igualdade perante a lei?"

Eu percebo o argumento. Não excluo que a convivência destas várias perguntas num mesmo inquérito influencie as respostas e também preferia fazer uma sondagem para cada tema.

Mas dito isto, acho que Miguel Vale de Almeida está a ser "disingenous". Primeiro, ele sabe perfeitamente que há um traço comum a todas estas perguntas: o modo, limites e natureza da regulação dos comportamentos individuais por parte do Estado. Têm a ver com políticas de regulação, e não políticas extractivas e redistributivas, onde o que está em jogo são interesses específicos e recursos materiais. E no caso do sacerdócio feminino, tem a ver com a regulação dos comportamentos imposta pelo agente social que, antes do Estado ter assumido o monopólio legal, exercia essa função: a Igreja. É isso que une todas estas perguntas, e não outra coisa qualquer.

Para além disso, se se levasse a de MVA avante, então tínhamos de deitar fora o General Social Survey, o British Social Attitudes Survey, o European Values Study ou o World Values Survey, todos eles estudos onde, num mesmo questionário, são colocadas estas e outros perguntas sobre estes e outros temas. Foi destes questionários, aliás, que muitas das perguntas colocadas na sondagem da Católica foram textualmente retiradas. E já agora: donde vem a insólita ideia de MVA - insólita especialmente para um cientista social e, muito especialmente, um antropólogo - de que a questão da igualdade de direitos cívicos e políticos não tem a ver com valores?

Depois há a sugestão - "São Dagem" - retomada aqui, de que os resultados foram o que foram porque a sondagem foi feita pela Universidade Católica. Será isso? Mas então por que razão a sondagem haveria de dar resultados claramente desfavoráveis, nuns casos, em relação às posições defendidas na doutrina oficial da igreja, e favoráveis noutros? Embirração especial com os homossexuais?

A verdade é outra. Releio agora os resultados de um inquérito realizado em 1998 em parceria pelo ICS e pelo ISCTE, a instituição onde MVA trabalha, no âmbito do International Social Survey Programme. Questionados sobre as relações sexuais entre adultos do mesmo sexo (e, note-se, nem sequer se está a falar em "direitos"), 73% dizem que a sua mera existência "é sempre errada". MVA pode não gostar de viver num país onde as pessoas respondem desta maneira a estas perguntas. Agora, se o quiser mudar, fazer de conta que o país não é o que é, ou que tudo não passa de uma mera construção da Universidade Católica, não me parece bom ponto de partida.

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